O futuro da Artemrede e os desafios das políticas culturais democráticas
Vânia Rodrigues
Texto originalmente lido em Cultura e Democracia, evento do vigésimo aniversário da Artemrede, em Março 2025

Introduzir o fim
As pessoas que, nestas ocasiões, falam no final, enfrentam um desafio particular, uma tentação e uma maldição. Devem, por um lado, evitar a tentação da última palavra, pondo-se muito sérias, sobrepondo-se sobranceiramente ao que ficou dito antes; e têm, por outro, de encontrar modo de não sucumbir à maldição da redundância.
A tarefa de celebrar
O exercício a que me propus foi o de cruzar o que fui escutando hoje com a leitura que fiz do Plano Estratégico 2025-2027 da Artemrede e da Carta de Compromisso que o acompanha, e com o meu próprio trabalho e investigação.
Desta vez, ao contrário de há dez anos, estive afastada deste exercício, mas tenho bem vivas as memórias deste percurso que fui acompanhando de diferentes modos (com menos proximidade nos anos mais recentes), e é a esse estatuto de velha amiga que recorro hoje para partilhar um conjunto de reflexões e, ao mesmo tempo, assinalar alguns desafios e arriscar um ou outro conselho. Em modo de celebração, claro está, mas juntando mais responsabilidades à ‘vida adulta’ da Artemrede. Assinalar os vinte anos da Artemrede tem forçosamente de ser mais do que fazer o elogio da sua sobrevivência. Com certeza, é por ter sabido mudar que encontrou sentido em continuar, e é por isso que podemos festejar hoje, duas décadas depois. Mas não é ponto em que deseje demorar-me: arrisca-se a ser percebido como um previsível encómio da ‘resiliência’, esse palavrão-fetiche do neoliberalismo. Interessa-me mais louvar o próprio exercício de planeamento que a Artemrede vem desenvolvendo desde a sua criação. Talvez as origens da Artemrede – gizadas no contexto da CCDRLVT – lhe tenham conferido uma certa familiaridade com planos, horizontes e metas. Mas não deixa de ser assinalável, no contexto do setor das artes e da cultura português, que a Artemrede venha desenvolvendo instrumentos de planeamento robustos, publicamente escrutináveis – assumindo compromissos, identificando valores e clarificando opções. Ao sublinhar esta característica da Artemrede, note-se, não estou a convidar-vos a admirar a eficácia técnica dos indicadores que escolhe, nem a fazer um elogio da accountability. É isso, com certeza, mas é sobretudo outra coisa, que explicitarei de seguida.

Futuro, democracia
De cada vez que se reúne para planear, e convoca autarcas, gestores culturais e artistas para esse exercício, a Artemrede convida-nos a escolher um futuro, um ‘futuro sonhável’, como escreve a Cláudia Galhós na introdução ao Plano. Ora acontece justamente que essa confiança no futuro é absolutamente determinante no contexto político atual, por múltiplas razões. Por um lado, em tempos de todas as emergências – ecológicas, sociais, políticas – não ceder ao presentismo tem especial importância política. Com efeito, os populismos esforçam-se por promover os valores da ação imediata, por apontar a desadequação do lento sistema de correções contínuas que é a democracia representativa. As forças populistas também se esforçam por convencer-nos que os ‘ismos’ de outros tempos (doutrinas de transformação social) estão definitivamente obsoletos e são hoje incapazes de oferecer respostas que correspondam a horizontes de futuro desejáveis. Aliás, o projeto populista de resolver os problemas ‘aqui e agora’, de deslegitimação das promessas de futuro não imediatamente alcançáveis é, na prática, um projeto de destruição da própria democracia, como sabemos.
Como escreveu Jonathan White, “a democracia como a conhecemos depende da ideia de continuação, de as coisas não acabarem abruptamente”. Dependemos do futuro porque é nele que projetamos o processo contínuo de correção dos problemas e das imperfeições da democracia. Seguindo ainda White, podemos dizer que a democracia funciona no longo prazo.
A confiança no futuro, portanto, importa para a política do presente, pelo que o exercício da Artemrede de projetar o futuro deve ser valorizado por mais do que a sua proficiência de execução ou pela prestação de contas que possibilita. Hoje, a sua relevância enquanto instrumento clarificador e orientador das políticas culturais locais é tão significativa quanto o seu alcance político latu sensu. Trata-se de agir sobre os problemas do presente, sim, mas partilhando um sentido de futuro e confiando no processo para lá chegarmos, juntos.
Isto torna-se ainda mais evidente se recordarmos que a Artemrede sempre propôs – e concretizou – a cooperação entre espectros políticos diferentes. Nesse sentido, a Artemrede sempre foi, e continuará a ser, um projeto algo desconfortável. A quadratura do círculo a que se propõe – criando pontes entre conceções de política cultural distintas, entre práticas de gestão cultural em diferentes estádios de profissionalização – cria um espaço de cooperação cheio de descontinuidades e contradições, permeável ao ocasional embaraço, muito diferente da harmonia auto-confirmativa das redes sociais, das petições e dos manifestos, em torno dos quais o setor de tempos a tempos se mobiliza. Mas o que é uma rede senão um conjunto coeso de buracos?



Gerir a complexidade
Tenho para mim que a Artemrede terá, cada vez mais, de virar a sua prática de cooperação do avesso. Já não necessariamente avançando, como costumam fazer as redes, a partir da triangulação mínima dos interesses convergentes dos seus membros (no caso da Artemrede, a importância que todos reconhecem a articulação cultura, territórios e comunidades), mas antes explorando as suas diferenças, e ainda assim propondo um rumo partilhado. Isso passará por responder a perguntas como: quanto é que temos de ter em comum? O que é que tem mesmo de ser comum e o que é que pode ser diferente? Os membros deste projeto coletivo têm de concordar nos detalhes do futuro que perseguem, ou basta que pensem que concordam? Se partilhar objetivos é importante, quanta discordância acerca do futuro é admissível?
A Artemrede já vem experimentando estas práticas, designadamente implementando projetos de geometria variável, que não envolvem todos os seus membros, ou ajustando a ação aos interesses de cada território. Mas a exigência pode e deve aumentar, passando dessa abordagem - que, não sendo de modo nenhum tipificada, continua a assentar na identificação do que é convergente - para uma abordagem maximalista, que ativamente exponha e explore as diferenças entre os territórios, as visões políticas, os modelos de gestão cultural que nela se encontram. Isto porque as formas, ganhos e razões para estar numa rede e atuar em rede já não são apenas ou maioritariamente relacionadas com identificar coligações de interesses. Essa é, claramente, uma característica que combate a fragmentação social. Contudo, hoje é igualmente decisivo enfrentar a polarização da sociedade. Por isso será crítico em vez de simplificar, atuando a partir do que é comum aos seus membros, explorar as diferenças internas, e até aumentá-las, como pode acontecer pela via da adesão de membros privados fora da esfera autárquica. Isso tornará a Artemrede mais relevante, e ampliará a complementaridade entre redes nacionais e projetos de cooperação.
Pode parecer paradoxal dizer isto acerca de uma rede que atinge os vinte anos, mas julgo que um dos desafios que terá de enfrentar será o da coordenação da complexidade, que é uma tarefa distinta de coordenar a partir do ponto denominador comum. Bem sei que nos aniversários se recordam as missões fundadoras, e que a Artemrede nasceu para resolver problemas. Mas julgo que agora tem de empenhar-se em criá-los. Criar problemas positivos transformando-se progressivamente num projeto gestor da complexidade. É necessário e a Artemrede é capaz.
Futuro e poder
Voltemos ao futuro, porque é nos próprios valores e iniciativas anunciados no Plano Estratégico 2025-2027 que reside o maior contributo da Artemrede para a construção de políticas culturais de futuro: na explicitação dos direitos culturais que defende e procurará promover, e na atenção que presta aos mais vulneráveis, mencionando “as mulheres, as crianças, as pessoas idosas, as pessoas migrantes, as pessoas racionalizadas, as pessoas com diversidade funcional ou as pessoas que vivem em situação de pobreza”. Nesta atenção e cuidado - que não é mero exercício retórico, pois correspondem- lhe no documento propostas e ações concretas - joga-se algo essencial: o esforço de imaginar futuros que também reflitam os interesses das pessoas que têm menos poder. De facto, a imagem do futuro tende a ser definida pelos que detêm o poder, que nele projetam as suas agendas. Num mundo profundamente desigual, qualquer esforço para democratizar a construção do futuro- mesmo que seja ‘apenas’ o plano estratégico de um projeto cultural - é digno de nota.
Tenho insistido em diversos fóruns que a gestão cultural tem de ser resgatada da esfera tecnocrática, por isso sustento que um plano estratégico pode ser um instrumento ao serviço da conquista do ‘direito ao imaginário’ a que se referia recentemente o António Brito Guterres.
Além do desafio de coordenar a complexidade, deixo então mais dois desafios à Artemrede, na sequência disto. Por um lado, o desafio a que insista e arrisque num horizonte temporal mais dilatado, não subsumindo o planeamento estratégico a um exercício de planificação; e, por outro, desafio-a a incluir de modo mais direto, no próximo ciclo de planeamento, as vozes e os contributos dos não poderosos, eventualmente a partir do importante estudo de não- públicos que irá levar a cabo. Incluir os anseios, necessidades e expectativas dos não poderosos não importa apenas por razões de representatividade: é tarefa fundamental para reencontrar a legitimidade do investimento público em cultura.
Uma história da (ir)relevância
A legitimidade do investimento público nas artes e na cultura tem origens diversas, mas pode dizer-se que, no mundo ocidental, se sustentou até há relativamente pouco tempo no consenso social forjado no pós-II Guerra Mundial, através do qual as políticas públicas de cultura constituíram mais uma dimensão do Estado social; confundiu-se aliás amiúde com a própria construção do Estado-Nação, que se serviu da cultura como cimento de uma identidade nacional, hoje felizmente objeto de contestação e reformulação. Mesmo nos países em que a cultura como parte do Estado Social não chegou a afirmar-se, esse foi ainda assim durante muito tempo o modelo aspiracional em que as políticas culturais emergentes se baseavam.
Em Portugal, a legitimidade do apoio público às artes e à cultura coincidiu com o processo de modernização do país, e com a sua europeização. Contudo, os tempos em que os desafios de uma democracia emergente como a portuguesa se bastavam nos anseios de “apanhar o comboio" e recuperar o atraso já passaram. Pelo caminho, desmontaram-se também alguns equívocos: o de que a política cultural seria um agente do progresso, ideia hoje contestada na sua dimensão eurocêntrica, linear e universalizante; e o de que a política cultural se justificaria enquanto política quasi-industrial, de regulação das falhas do mercado e de criação de emprego. Acerca disto diz-nos Justin O’ Connor que “justamente quando o projeto cultural do Estado moderno se dissolveu, a resposta dominante foi reposicionar a cultura como parte da economia de consumo” e nesse contexto fomos permitindo que a cultura se justificasse pelos seus impactos e externalidades. Ainda não saímos totalmente desse paradigma empobrecedor, mesmo que a linguagem se vá atualizando. Por isso é tão importante observar como a Artemrede se compromete com os processos e os efeitos sociais, comunitários e territoriais da sua ação, ao mesmo tempo que cuida das condições objetivas em que os processos criativos operam, designadamente atribuindo-lhes recursos e tempo adequados.
Mas não será apenas nessa atenção aos modos de fazer que se joga a relevância e o potencial sucesso do seu plano estratégico. Nas diversas iniciativas que propõe, do Fórum Político, à capacitação de equipas e eleitos, às Caravanas e aos Dias Abertos, está contida a possibilidade de se constituírem como construtores dessa renovada legitimidade política de que o setor da cultura necessita.
Sejamos claros: não serão suficientes os precedentes administrativos que a institucionalização da cultura foi gerando, já que é evidente, hoje, a progressiva marginalização da cultura na política nacional e global.
Basta recordarmos o rotundo falhanço da campanha de 2015 para fazer da cultura o 18º Objetivo de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas. Há quem conteste este anseio do setor cultural - isso é temapara outro momento - mas é inegável que essa derrota expôs a tibieza da narrativa em que a campanha se sustentava: uma conceção antropológica da cultura que, sendo tudo, não era nada; uma exaltação das capacidades da cultura enquanto geradora de empregos qualificados na economia criativa e do conhecimento; e uma crença desmesurada no poder de transformação social da ação cultural e artística. Enfim, o prémio de consolação terá sido reconhecimento da ‘transversalidade’ da cultura. Fraco consolo, diria eu.
Essa é, portanto, uma tarefa iniludível que se associa a este ciclo de planeamento da Artemrede: o de contribuir para o processo de relegitimação da cultura e das políticas culturais, fundado no ideal de cultura como direito humano, sim, mas que não seja inocente e se perca no romantismo e na abstração; que saiba defender o legado e atualizar o propósito e o funcionamento da infraestrutura cultural existente.
Nesse processo, pode ser útil exigir mais dos seus membros, instando-os a aprofundar os seus entendimentos de política cultural, e a interrogar a forma como vêm fazendo as coisas. Pode ser útil perceber se a todo o momento estão investidos nos diferentes papéis que a cultura pode assumir e não apenas num deles.
Segundo Amayrta Sem, a cultura desempenha 3 papéis. Um papel constitutivo, que podemos dizer ser relativo aos direitos, à infraestrutura e ao ecossistema; um papel avaliativo, relacionado com valores e debates; e um papel instrumental, que tenha em conta os seus efeitos. Talvez valha a pena afirmar melhor estas três dimensões da política cultural, e garantir meios de as manter sólidas e conectadas, antes de nos deslumbrarmos em demasia com as virtudes da transversalidade.
Estou segura de que a Artemrede é um dos projetos que tem capacidade para atualizar esta reflexão acerca dos fundamentos da política da cultura como política pública, porque no caminho que já percorreu e naquele que desenha agora para a frente soube incorporar mutações sensíveis: i) não descuidou o diálogo com as práticas e as discursividades artísticas contemporâneas, e por isso conta com tantos e tão diversos artistas como cúmplices; ii) nunca desistiu de promover a formação, o pensamento crítico e o desenvolvimento profissional dos agentes que implica; iii) compreendeu a centralidade dos processos de mediação para os seus objetivos de desenvolvimento cultural e comunitário, sem os dissolver em abordagens de arte participativa ‘pronto-a-comer’ e sem hipotecar a qualidade dos processos; iv) soube identificar o desafio da internacionalização adaptando inventivamente os financiamentos disponíveis às necessidades concretas dos territórios, criando renovadas cumplicidades profissionais, e resistindo à ‘projectificação’ desenfreada a que a competição por financiamento europeu não raras vezes induz.
Perto da nossa fantasia
A Artemrede é um projeto profundamente atual. Parece-me que mesmo algumas características do seu projeto de cooperação que podem parecer mais ultrapassadas, como a circulação de espetáculos, voltam hoje a ser importantes, já não se justificando somente por razões de acesso ou por razões de escala, mas tornando-se elementos fundamentais de uma estratégia de prolongamento da vida dos espetáculos, valorizando as carreiras dos artistas, técnicos e produtores, produzindo em condições de maior sustentabilidade ambiental e social, combatendo estratégias exclusivistas de programação e oferecendo resistência ao regime aceleracionista de contínua produção do novo.
As aparências iludem. São as políticas centrais de cultura que precisam da Artemrede, e não o contrário. Sem forças coletivas organizadas, nenhuma política cultural - menos ainda uma, como a nossa, tão debilmente dotada de meios….. – sem forças coletivas profissionalizadas e críticas, as políticas culturais resvalam para a tecnocracia, especializando-se em distribuir recursos escassos.
A Artemrede, como outros projetos coletivos, oferecem uma plataforma segura para os profissionais, cidadãos e políticos porem em diálogo os seus desejos para o futuro. Sem esses espaços associativos - que foram historicamente decisivos em todas as conquistas sociais - o setor da cultura cederá à pressão individualista, que promete avanços pessoais, de caminho privatizando o futuro, e a política cultural ficará refém de atender a mil demandas particulares.
As políticas culturais precisam de projetos como a Artemrede, porque em tempos de retração democrática a resposta só pode ser intensificar a democracia. As políticas culturais precisam de projetos como a Artemrede, porque tendem a ser continuistas e falta-lhes imaginação. Colocam-se quase sempre no horizonte do concretizável, e temos de ser nós a puxá-las para perto da nossa fantasia. As políticas culturais resmungam, mas sabem que precisam de ser incomodadas, para ultrapassarem a fronteira espessa do previsível.
Métricas do imaginável
Se correrem bem, os exercícios de planeamento tendem a tornar-se mais previsíveis. Os relativos sucessos do plano anterior alimentam o seguinte, reforçando as suas certezas. Isso traduz-se em cada vez mais confiança em avançar metas e indicadores.
Vejo isso claramente no actual exercício de planeamento estratégico da Artemrede. Percebo bem a necessidade de definir prazos e metas - eles sinalizam uma necessidade e ajudam a coordenar a ação, o que é tanto mais relevante no contexto de uma rede. Também fornecem um referencial de ação que empresta credibilidade ao exercício de planear o futuro. Por isso mesmo, e bem, um plano estratégico tem de concretizar-se em algum tipo de métricas.
Mas convém colocarmos esse esforço de parametrização em contexto: quando a Artemrede começou a produzir indicadores e outras formas de organizar e comunicar publicamente a sua ação, poucos no setor cultural o faziam. Hoje, o setor está demasiado alinhado com o cumprimento de metas e torna-se necessário pensar criticamente acerca da sua função.
Tenho refletido e escrito bastante acerca disto no contexto do encontro entre as artes e emergência ecológica, e parece-me que essas reflexões podem ser úteis também aqui. Mesmo no campo mais restrito do debate acerca das alterações climáticas, por exemplo, tendo a alinhar com vozes minoritárias e algo controversas que chamam a nossa atenção para o facto de mesmo as alterações climáticas - a mais profunda das ameaças - tenderem a ser transformadas, nos círculos de decisão política, num problema de cálculo. Isso é discernível nas metas e prazos invocados. Ao fazer das emissões zero em carbono um objetivo primordial, os poderes públicos marginalizam uma série de outras considerações que não são menos relevantes para o equilíbrio ecológico. Com uma agravante: ao sublinharem um conjunto particular de variáveis num horizonte temporal limitado, os objetivos e os prazos convidam-nos a pensar mais no futuro próximo, assoberbado de especificidades, e menos acerca do horizonte mais distante e dos objetivos mais gerais e incalculáveis a ele associados. Ou seja, aumentam a previsibilidade do arco das nossas ações, mantendo-as dentro dos limites do concretizável. Nesse sentido, dar demasiada importância aos instrumentos de planeamento pode ser uma forma de manter o setor cultural disciplinado e paradoxalmente distraído do essencial.
A obsessão com os cálculos - das emissões de carbono, dos impactos sociais - estimula um foco nas coisas que se prestam à medição, e faz com que destinemos tempo e recursos escassos ao aprimoramento das ferramentas de medição e à obtenção dos resultados que estamos a monitorizar. No domínio do ambiente, esse foco levanta questões de escala e de compreensão sistémica relevantes, mas no contexto que aqui nos reúne chamaria sobretudo a atenção para o risco que o foco excessivo nas métricas acarreta, do ponto de vista da imaginação democrática.
Proponho mesmo que por cada objetivo ‘SMART’, Specific, Measurable, Attainable, Realistic and Time-bound, se estabeleça a também um objetivo STUPID: Stratospheric, Stupendous; Towering, Transcendent, Unimaginable, Unreasonable, Poetic, Ilegal, Immoderate, Inspiring, Disproportionate. (Fica aqui o meu contributo para animar o mundo dos powerpoints desenxabidos…)
A nossa impaciência organizada
Temos hoje que estar mais conscientes do perigo da ordem tecno-optimista, que procura esconder a profundidade da incerteza abissal da época em que vivemos com façanhas do domínio tecnológico e de manutenção do domínio racional da humanidade sobre a natureza. O espaço da imaginação não pode ser substituído pelo esforço da redução da incerteza, pelo estabelecimento de objetivos mensuráveis. Há mérito, também, em traçar objetivos irrealistas - o que é diferente de irrealizáveis. Dizia esta semana Judith Butler:
“Contra os chamados realistas que nos dirão que tudo está a ser destruído e que só os tontos pensam que a destruição pode ser travada, temos de transformar-nos em tontos inteligentes. E não ter vergonha de ser tonto. Dizer a um conjunto de pessoas que podemos imaginar juntos e produzir um movimento massivo de resistência - sou uma tonta ao dizer isso. Ótimo. Porque isso significa que não fiz as pazes com a realidade. Porque haveríamos de fazê-lo? A realidade ainda está por transformar. Não se adaptem à realidade. Sejam inteligentes, sejam estratégicos, mas não se adaptem à realidade como ela é. Por outras palavras, não acreditem que este mundo, tal como existe, é o único possível.” (tradução livre).
Recordemos as lições da fragilização progressiva da cultura: é a nossa capacidade de especular e não de medir, de transformar e não de prever, e de desestabilizar e não de controlar, que corresponde ao essencial dos nossos contributos e são essas tarefas que podem defender a irredutível necessidade social da arte e da cultura. Com certeza, a Artemrede saberá equilibrar a necessidade de calcular, medir e avaliar com a importância de arriscar e experimentar. No trabalho de implementação que agora começa, convém não perder de vista a ideia de que um plano estratégico só ganha capacidade de organizar a ação depois de lhe atribuir um sentido. Assim, o último desafio que deixo à Artemrede é que, mesmo considerando os prazos que já definiu, e respeitando a intervenção duracional que sabiamente defende, tenha pressa. Que ponha pressa no desejo de transformação social que o plano estratégico denota. Que cultive uma espécie de impaciência organizada, que seria a minha definição pessoal de plano estratégico. Ninguém expressou melhor impaciência do que James Baldwin, por isso termino com ele:
“Querem que me reconcilie com o quê? Nasci aqui há quase 60 anos. Não vou viver mais 60 anos. Vocês sempre me disseram que demora tempo. Demorou o tempo do meu pai, o tempo da minha mãe, o tempo do meu tio, o tempo dos meus irmãos e irmãs, das minhas sobrinhas e sobrinhos. Quanto tempo mais querem para o vosso progresso?”
Vânia Rodrigues
Março 2025
