Primeira paragem: As Marias | Andresa Soares

Claudia Galhós (texto), Pedro Jafuno (imagem)

Versão audio disponível aqui no Spotify (voz de Inês Bernardo)


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Uma jornalista e um fotógrafo em viagem

A Artemrede lançou o desafio à jornalista Claudia Galhós e ao fotógrafo Pedro Jafuno de seguirem os processos criativos que constroem as coproduções 2024-2025. Durante dois anos seguem os artistas, comunidades, grupos e situações, escrevendo textos, registando sons, cristalizando olhares. Um trabalho autoral agora publicado em texto, imagem e som.

 

Ninho das Artes, Portela/Outurela (Oeiras), 9 e 10 de Julho de 2024,   

[Projecto: “Ensaio dirigido a…” de Andresa Soares]

Vamos ter com as Marias.
Foi apenas isto que me disseram. Sabia pouco mais. 

Combino aproveitar a boleia de carro com a Andresa, que está por uma semana a mediar encontros com um grupo, chamado Marias. As Marias. Elas são mulheres, na sua maioria migrantes, que vivem no concelho de Oeiras. Vamos juntas e aproveito para ficar a saber o que tem acontecido.
A associação que as acolhe fica no rés-do-chão de um recanto do bairro 18 de Maio, para os lados de Carnaxide, em Portela/Outurela. 

A Andresa já conhece. 

Junto-me a elas no terceiro dia de partilha de práticas artísticas. E, como aconteceu com a Andresa, também eu me apaixono.
Nem todas têm Maria no nome, mas ali não entram Manéis. A não ser de vez em quando. Em dias de festas ou almoçaradas.
Ao primeiro encontro vêm os abraços, os olhos carregados de vidas difíceis que se iluminam para nos acolher. Mas nem todas se abrem logo à chegada. Pelo menos é o que sinto. Algumas permanecem guardadas no seu silêncio, numa aparente timidez ou num não querer dar confiança logo à partida. Foi um equívoco de primeiras impressões.
Nos primeiros desafios lançados pela Andresa, nenhuma se retrai. Poucos minutos passados, misturam-se os exercícios do workshop da Andresa, com detalhes e partilhas das vidas delas. Está tudo ligado. E é tudo feito com muito cuidado.

Somos mundos diferentes que nos encontramos ali por uns dias. 

A Andresa já me tinha falado de como elas, quase sem excepção, não tiveram quem lhes ensinasse que podiam sonhar ser diferentes de quem são. Poderem ter outra profissão, exigir mais para si.
Tinham trocado perguntas e respostas no dia anterior. Aos poucos, devagarinho, com gentileza, a Andresa foi experimentando que elas lhe dessem um repertório de palavras, frases, vivências, gestos, posições, movimentos, em retorno a perguntas que lhes fazia ou jogos que lhes propunha. 

É nestes casos que o trabalho da arte, da arte viva, é um trabalho delicado e frágil de viagem ao maravilhoso mundo vulnerável de outras pessoas. É necessário agir com delicadeza e meiguice. Só assim é possível que nessas andanças e danças, de corpos e de palavras, haja riso e ternura. E seja justo para todas as pessoas envolvidas. É um equilíbrio muito precário.

Houve muito riso. Houve muita ternura.

Desses dias, a Andresa preservou algumas frases que escutou delas, com anonimato e sem saber ainda se e como as ia usar mais tarde, fosse no espectáculo ou em qualquer outro contexto. Acabou por usar na partilha aberta que fizeram no final da semana.
Quando abri o documento que partilhou comigo, reencontrei ali a imensidão de doçura e desconsolo que me eram familiares algumas daquelas vivências partilhadas, e que a Andresa compilou numa sucessão de frases iniciadas por “Alguém disse”. Nesse registo de memórias comuns, enunciavam-se as lembranças daquelas mulheres, quem são, quem foram. Muitas delas reconheci. Também as tinha ouvido dizer.

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Talvez seja mentira. Talvez seja verdade.

Com o computador aberto, 

Li:
“Alguém disse: O meu corpo está todo prendido.”

Li:
“Alguém disse: Tive um acidente quando tinha 9 anos e fiquei com uma perna torta. Mas com 50 e tal um médico colocou-me uma prótese à martelada. Quase morri mas a perna ficou direita.”

Li:
“Alguém disse: Quando punha a saia de baixo rodada, com goma de mandioca, os rapazes ficavam loucos. Mas eu não conhecia homem. Eu só via homem ao domingo e ia para casa.”

Li:
“Alguém disse: Quando tinha 18 anos tive sete namorados mas só gostava de um, o pai dos meus filhos que, coitado, já está na terra da verdade. E então fugi com ele para a casa dos pais dele.”

Esta lembro bem de ouvir a Alzira, que depois soube que tinha o apelido de Ayoobmia, contar a todas, para logo a seguir, com um olhar maroto, recompondo a sua história, desdizer tudo a rir, “é mentira, não tive nada”. Parecia uma criança feliz a brincar ao faz-de-conta.
Talvez seja mentira. Talvez seja verdade.
Trago comigo muitos abraços e risos trocados com a Alzira e com cada uma daquelas mulheres. 

Li:
“Alguém disse: A minha madrasta ensinou-me que a mulher não deve andar com passo de cabra. A mulher que anda com passo de cabra não presta. A mulher tem de andar com passo de vaca.”

Esta também me lembro bem. Foi já no final de um dos encontros, naqueles momentos deliciosos em que vamos adiando as despedidas e deixamo-nos ficar a trocar mais umas histórias e a Filó, diminutivo carinhoso de Filomena, se soltou e pôs-se a ir a outros tempos, arrancar do fundo do baú da memória histórias de uma jovem Filó que tentava sempre fugir às proibições do pai e arranjar maneiras criativas de se pintar e encontrar com rapazes. Sem que ninguém desse por isso. Mas davam. E ela levava um raspanete e ordenavam-lhe que limpasse a cara do mercúrio, que era o que tinha para dar uma corzinha ao rosto, e ir direto para casa.
A Filó é um amor. Faz-nos rir muito. Mas nem sempre é assim. O rosto passa por muitas expressões, vai-se mudando, às vezes quase rindo, outras a evitar uma lágrima. Foi o que aconteceu, no jogo das estátuas, quando contou que ficou órfã aos 11 anos, que o pai demorou 14 dias a dizer-lhe a ela e ao irmão que a mãe tinha morrido. 

É ela que recordo AGORA como se estivesse a falar AGORA.
“A minha mãe não deixava o meu pai bater e eu pedi de coração que o meu pai morresse, mas o meu pai não morreu. O coração não mata.”
Se houvesse tempo, estou certa que a Filó precisaria de dias ou meses para contar as muitas histórias da sua vida. E em algumas íamos rir. Noutras tentaríamos conter lágrimas.

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Elas são muitos mundos ali a conviver

Neste encontro-partilha-trabalho com a comunidade, numa sessão que consta do início do levantamento de materiais para o projecto “Ensaio dirigido a…”, a Andresa fez com elas: uma lista de coisas de que estavam fartas; uma lista de histórias individuais; agrupou duas a duas para se reconhecerem pelo toque, de olhos fechados; compôs com a imaginação delas estátuas colectivas; criou duos em que uma esculpe a outra no centro do círculo humano, desenhando uma posição ao seu gosto – onde apareceram muitas figuras de santas; escreveram cartas ao corpo que depois leram para todas; fizeram jogos de vivência de grupo e de consciencialização de ocupação do espaço. No final, elas ainda nos ensinaram uns passos de funaná.  

O grupo chega a ter 50 mulheres reunidas. Nestes dias, apareceram uma média de 30. O teatro, a dança, os jogos… tudo foi recebido como uma festa. De cada uma, trago uma lembrança, uma ternura, uma aflição, uma malandrice. Nenhuma nos deixou indiferentes. Trago essas memórias ainda coladas ao corpo, nos abraços que demos. Como a Fernanda que partilhou a vergonha que tem de uma particularidade de uma parte do seu corpo. Não reproduzo aqui, não quero trair a confiança.
Ultrapassamos a dificuldade de comunicação quando as línguas que dominamos não são as mesmas, como é o caso da Maria da Conceição, que fala crioulo. A Ambrosina traz o rosto todo aberto num sorriso quente. É muda. Não fala, quer participar em tudo, e é a primeira a levantar-se para nos ensinar o funaná.
Elas são muitos mundos ali a conviver. Algumas até já foram a Cabo Verde em grupo. Uma viagem histórica, em que puderam revisitar o país de onde vieram e já não conheciam. 

As Marias são mulheres de vidas duras. Têm a ausência, a distância, a dificuldade, a saudade e a solidão carregadas nas mãos e nos rostos.
As Marias são mulheres de vidas com o coração nas mãos. Têm a meiguice, a bondade e a doçura a transbordar nas mãos e nos rostos. 

Elas são a Maria dos Santos, a Maria dos Anjos, a Antonina Varela, a Filomena Correia, a Catarina Barroqueiro, a Isabel Borges, a Fernanda Sousa, a Maria Luísa, a Isabel Mendes, a Maria de Fátima, a Maria Fernanda, a Maria Conceição, a Maria Balula, a Rosa Viegas, a Eduarda Sanches e a Maria da Conceição Varela. E são muitas mais.  

Elas vão à praia juntas. Algumas nunca tinham pisado a areia. Foram pela primeira vez à praia nestas actividades.
Elas dançam, cantam, têm (ou tinham) aulas de ginástica, trabalhos manuais, alfabetização, convívios. 

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Este “Ensaio dirigido a…” é uma obra com desdobramentos. Andresa está a construir seis versões diferentes, para comunidades ou com objectivos diferentes – uma, por exemplo, poderá ser para crianças – e vão sendo estreadas ao longo do tempo. Uma proposta artística que se vai alimentando e formulando através da vivência de fases de pesquisa que passam por encontros, oficinas, escrita e gravação. 

O que é que a Andresa vai fazer com estes materiais? De que forma eles vão surgir na obra performativa? Será que vão surgir? O que significa para estas mulheres esta partilha? O que significa esta partilha para um projecto artístico que, quando estrear, terá provavelmente apenas um eco longínquo de algo tão especial que aconteceu? 

Ficam algumas perguntas. Levantam-se muitas mais. E a promessa de continuar a viagem, no desejo de mais encontros.  

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