Meio no Meio é uma criação de Victor Hugo Pontes, que reflete um processo de três anos com um grupo intergeracional proveniente de quatro territórios – Almada, Barreiro, Lisboa, e Moita – ao qual se vieram juntar outros intérpretes profissionais, num trabalho que combina e retrata diferentes percursos artísticos dos que estão em cena. Acompanhando a vida destes participantes ao longo de três anos, atravessados por uma pandemia, Meio no Meio parte das ideias de percurso e de expectativa; de memória e autobiografia; e do movimento incessante de corpos levados ao limite por Victor Hugo Pontes
1. Territórios
Quem não conhece a região e olhar no mapa os quatro territórios do Meio no Meio – Trafaria (Almada), Barreiro antigo, Marvila (Lisboa) e Vale da Amoreira (Moita) –, todos à beira do Tejo ou perto das suas margens, poderá pensar que são lugares físicos próximos entre si e relativamente próximos em linha reta do centro histórico da capital. Mas isso é apenas no plano abstrato do mapa. Na experiência quotidiana, estes são lugares sociais periféricos na área metropolitana de Lisboa, estabelecidos nos interstícios da malha urbana. Quem habita estes bairros e trabalha ou convive no centro da cidade dedica horas diárias nas deslocações, em especial se o fizer nos transportes públicos.
Marvila e Vale da Amoreira são bairros municipais de realojamento, implantados em zonas de vazio urbano, ou melhor, em zonas onde a construção urbana faz fronteira com resquícios do espaço rural às portas da cidade – onde faltam infraestruturas ou espaço público habitável e resistem hortas e o rebanho ocasional. O Segundo Torrão (Trafaria, Almada) é um bairro de autoconstrução, cuja história os habitantes mais antigos fazem remontar a cabanas de pescador utilizadas para veraneio de moradores de bairros populares de Lisboa; panorama que se alterou bastante em décadas mais recentes, com a chegada de populações migrantes em busca de trabalho e que aí se instalam em condições precárias. No Barreiro antigo, as marcas da antiga vila operária, as suas associações culturais históricas, mas também um edificado por vezes degradado, devoluto ou ocupado, coexistem com a frente ribeirinha virada para Lisboa suspensa num processo de qualificação por acontecer.
Os quatro bairros são diversos entre si e representam diferentes momentos históricos da formação de periferias urbanas em torno de Lisboa, neste século e no século xx. Dentro das diferenças, há um traço comum: a importância dos fluxos migratórios na configuração dos territórios. A experiência migratória – pessoal ou familiar – é comum entre os participantes do Meio no Meio: nuns casos, o deslocamento da província para a capital, talvez envolvendo uma experiência de emigração; noutros, a imigração de outros países (em especial países africanos lusófonos) para Portugal, que pode até ser apenas um ponto de passagem na diáspora.
Essa experiência coletiva de trânsito entre espaços e tempos é uma das matérias biográficas recriadas na prática artística do Meio no Meio.
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2. Ao longo do caminho – o primeiro ano
Neste momento, agora, dois anos e meio depois de termos iniciado em conjunto um caminho de descoberta e experimentação, a pergunta é inevitável:
– Será mesmo possível que o "Meio no Meio" esteja a aproximar-se do fim?
Somos cerca de 60 participantes neste projeto, habitantes de 4 bairros diferentes na região de Lisboa – alguns chegados de partes diferentes do país e do mundo, uns há muito e outros há pouco tempo. O caminho começa em algum lugar e aconteceu desta vez na primavera de 2019, com a formação de teatro no Barreiro; alguns jogos, muita improvisação e, quase sem darmos por isso, a primeira apresentação pública à comunidade, um exercício dramatúrgico sobre memórias e experiências pessoais – iremos fazer este trabalho várias vezes nos próximos tempos, de diferentes maneiras e usando várias linguagens artísticas.
Antes de chegar o verão, a formação de cinema na Trafaria, entre o escuro da sala onde se viram alguns clássicos do cinema ou documentários e a calçada cheia de sol onde se filmou a curta "Bilingueiros" – aí está para ser vista. No outono, a formação de hip-hop no Vale da Amoreira. Alguns de nós vinham com experiência, e tinham já rimas feitas e até views no youtube; não sabíamos bem, outros de nós, o que era ou podia ser… até que começaram as battles – e aí fomos todos para o estúdio, todos atrás das M'n'M Power Girls! E no final do ano, a formação de artes visuais em Marvila explorou diferentes suportes, mais uma vez em torno de materiais autobiográficos e da representação de si – através de muitas diferentes imagens, exceto selfies... Entre estas formações, o núcleo de dança, primeiro no Barreiro e depois nos outros bairros – tempo curto, intensidade total.
E assim passou o primeiro ano. Na verdade não, ainda não, no momento em que se estava a completar o primeiro ano, acontece a oportunidade de mostrar o projeto a um público desconhecido do "Isto é Partis" – uma energia brutal. Não sabíamos na altura, mas logo a seguir, poucas semanas depois, ia começar a pandemia que veio virar tudo do avesso…
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3. Ao longo do caminho – o ano da peste
De repente pára tudo, como em todo o lado à nossa volta. Já estava a começar uma nova formação de cinema, preparava-se também a de teatro, ficou tudo parado.
A pergunta – e agora?
Vamos ter de parar, vamos ter de recomeçar, temos de nos encontrar – mas como? Alguma solução terá de se encontrar, vamos ter de experimentar qualquer coisa nova, temos de nos encontrar… E assim hoje e muitas vezes ao longo dos próximos meses, sempre a experimentar hipóteses de trabalho – será que abre? quando é que abre? –, sempre a recomeçar quase do zero, mas não exatamente do ponto zero, à procura de um passo adiante. Sempre a procurar uma forma de não parar, de não ficar para trás, de ninguém ficar para trás.
Também como em todo o lado à nossa volta, a primeira tentativa de resistência foi mergulhar no mundo aos quadradinhos das teleconferências e grupos de mensagens, só para nos vermos, para dizer que estamos cá, mesmo se distantes, próximos. Nem todos temos o computador que é preciso, ou o telemóvel, ou a rede, ou os dados, ou o tempo, ou a companhia, ou o conforto. Mais que nunca, o contato é preciso. E durante algumas semanas vamos fazendo e inventando esse simulacro à distância, teatro nos écrans, coreografias inteiras na expressão facial, vídeos em cadáver esquisito, retratos encenados em que trocamos de pele uns com os outros – enganar o tempo, prosseguir.
Na breve interrupção do verão e outono, voltámos a encontrar-nos, já advinhávamos que era um reencontro curto, mas um reencontro, uma maneira diferente de estar, encontros mais pequenos, grupos contados pelos dedos, a permanente vigilância dos gestos, mas um reencontro.
E ainda assim, a descoberta, novos ciclos, de novo a dança, o cinema, o teatro, as artes visuais, o hip-hop. O grupo divide-se e junta-se, conseguimos levar o caminho do meio.
Por fim, conseguimos encontrar-nos todos outra vez num domingo de sol à tarde em Marvila, por caminhos conhecidos e desconhecidos. Parece que passou já muito tempo, mas não é o fim.
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4. Rituais artísticos
"Cada um e cada uma pode fazer o exercício enquanto se sentir confortável."
O início começa pelo princípio e nas primeiras formações o início são jogos para quebrar o gelo, dizer o nome, criar o grupo. O exercício mais simples é formar uma roda, todos dizerem o nome à vez, memorizar todos os nomes, chamar um nome e trocar de lugar, sair de jogo se falha o nome.
Outro dia mais adiante, talvez até numa formação diferente, trazer um objeto de casa, associar ao nome, contar um episódio da história pessoal. A cada passo uma estória com uma memória mais vincada, uma sucessão de episódios, uma narrativa de si, várias narrativas, às vezes a brincar, às vezes a sério. Outras vezes não é uma narrativa, é um desenho, fotografia – outras vezes é uma cena improvisada, uma estória falsificada, uma biografia inteira inventada, uma rima rap que parece fado à desgarrada, pedacinhos de história.
Já na fase final do projeto, depois das formações artísticas, durante a residência de criação do espetáculo, há um regresso a esses exercícios iniciais de apresentação de si – antes de mais o nome, o que há num nome? qual é a história do nome? Mas agora já não é apenas dentro do grupo, não é apenas para quem já é conhecido, é para o público – e é já amanhã.
Agora no palco, já não é exatamente a história de cada um, quem sabe?, talvez a estória tenha acontecido mas com outro nome noutro lugar, será verdade?, talvez não tenha acontecido exatamente assim, mas foi sentida assim e só assim pode ser contada – talvez seja uma história mais verdadeira?
Talvez o retrato seja mais verdadeiro quando nos pomos no lugar do outro.
O palco é um lugar sagrado?
"Boa noite, isto passa-se antes de começar."
Rui Telmo Gomes | Investigador CIES-Iscte
"Há cerca de dois anos e meio começou o projeto Meio no Meio, tema do projeto de investigação sobre práticas artísticas participativas que comecei ao mesmo tempo. O plano previa dois anos de formações artísticas em diferentes áreas (dança, teatro, artes visuais, cinema, hip-hop) e um terceiro ano dedicado à montagem de um espetáculo original. Tomei parte nas formações com os restantes participantes e fiz de público nos ensaios antes de haver público. Esse era o plano, mas claro, o que aconteceu até agora não podia ser previsto. Estas são algumas notas que fui tomando".
Rui Telmo Gomes é investigador integrado do CIES-Iscte. Doutorado em Sociologia (2013, Iscte-Instituto Universitário de Lisboa). Desenvolve investigação nos domínios da sociologia da arte e cultura, privilegiando temas como: processos artísticos participativos; profissões artísticas e do setor criativo; políticas culturais. É membro da equipa do OPAC - Observatório Português das Atividades Culturais. O seu projeto de investigação sobre o Meio no Meio será publicado em 2021.
Os Participantes
Duas gerações, quatro territórios, memórias e motivações sem conta.
Valter Fernandes
Maia
Teresa Amaral
Moita
Luís Nunes
Barreiro
Maria Augusta Ferreira
Lisboa
Yana Suslovets
Barreiro
Sidolfi Katendi
Almada
João Pataco
Estremoz
Alegria Gomes
Moita
Victor Hugo Pontes
Porto
Benedito José
Almada
Rolaisa Embaló
Moita
Dúnia Semedo
Almada
Paulo Mota
Santa Cruz do Bispo
Ricardo Teixeira
Lisboa
Nérida Rodrigues
Barreiro
Leopoldina Félix
Lisboa
Mavatiku José
Almada
Meio No Meio é o projeto da Artemrede selecionado no âmbito da 3ª edição do programa PARTIS da Fundação Calouste Gulbenkian. Desenhado para um período de 3 anos (2019 - 2021), o projeto para a inclusão social através de práticas artísticas conta com a direção artística do coreógrafo Victor Hugo Pontes e com a parceria da Nome Próprio, da RUMO-Cooperativa Social (acompanhamento social), do CIES-IUL | Centro de Investigação e Estudos de Sociologia do Instituto Universitário de Lisboa (estudo de impacto) e de 4 municípios associados da Artemrede: Almada, Barreiro, Moita e Lisboa.
Meio No Meio envolve jovens entre os 16 e os 25 anos e adultos com mais de 45, oriundos de quatro meios distintos: bairro do 2º Torrão da Trafaria (Almada), Barreiro Antigo, Vale da Amoreira (Moita) e Marvila (Lisboa).
Em 2019 e 2020, os participantes tiveram acesso a várias ações de formação e pesquisa em cinco disciplinas artísticas (teatro, cinema, artes visuais, música Hip-Hop e dança), coordenadas por artistas oriundos destes territórios e pela direção artística.
Esses artistas-formadores são Catarina Pé-Curto (artes plásticas, Almada), Carina Silva (teatro, Barreiro), Mário Ventura (cinema, Moita), Nuno Varela (música Hip-Hop, Lisboa) e o próprio Victor Hugo Pontes (dança – disciplina agregadora de todo o projeto).
Em 2021, o Centro de Experimentação Artística do Vale da Amoreira (Moita) acolheu a residência de criação do espetáculo multidisciplinar Meio No Meio, que representa o culminar de um trabalho de três anos e que se apresenta nos quatro municípios participantes. O espetáculo conta ainda com a coprodução do São Luiz Teatro Municipal, em Lisboa.
Todo o processo de formação e criação foi registado e dará origem a uma longa-metragem documental a estrear em breve.
Meio no Meio é o segundo projeto da Artemrede produzido no âmbito do programa PARTIS. O primeiro, ODISSEIA, envolveu seis municípios e deu origem a uma peça de teatro (E Agora Nós!, de Rui Catalão), a um espetáculo de artes de rua (Histórias em Viagem, da cia Radar 360º) e a um filme-concerto (Curtas-Migratórias, António-Pedro/Caótica).