O LUGAR DA CULTURA NOS DESAFIOS DAS CIDADES
CONCLUSÕES
No contexto de eleições autárquicas em Portugal, recordamos algumas das discussões desenvolvidas no IMPULSO: Fórum Político da Artemrede que, ao longo de 5 dias do mês de junho 2021, assumiu-se como plataforma de reflexão sobre os desafios das cidades nos próximos quatros anos e o lugar da cultura nesse percurso rumo a sociedades mais coesas, sustentáveis e justas.
Através dos canais digitais da Artemrede, cerca de 50 profissionais da cultura e das artes, investigadores, decisores políticos e agentes de desenvolvimento local partilharam ideias, preocupações e propostas que, acreditamos, são contributos úteis para os futuros executivos municipais na construção e execução das políticas culturais locais.
Destacamos algumas das reflexões produzidas e convidamos a reverem os vídeos do Fórum Político, disponíveis aqui.
O Fórum Político iniciou-se com um debate que partiu da experiência da Artemrede, reunindo alguns dos seus protagonistas, com perspetivas e perfis diversos. A conversa abordou a importância do trabalho em rede intermunicipal, algo que é reconhecido e valorizado pelo potencial de capacitação e desenvolvimento dos territórios. Algumas das mais-valias apontadas foram:
| a qualificação das equipas municipais, através da aprendizagem interpares e do intercâmbio de experiências e metodologias;
| a oportunidade para aplicação de metodologias e práticas inovadoras na aproximação entre as artes e os cidadãos e de promoção da participação na vida cultural;
| a criação de espaços de encontro entre artistas, territórios e comunidades;
Por outro lado, a participação em projetos mais complexos, que implicam um trabalho de proximidade com as comunidades, exige novas competências, pelo que a quase generalizada subdimensão das equipas municipais foi referida como o maior obstáculo ao sucesso destas iniciativas. O reforço das equipas e a diversificação de perfis e competências são assim, necessidades prementes para desenvolver um trabalho qualificado tendo em vista uma maior participação dos cidadãos na vida cultural das suas comunidades, algo que vários intervenientes nos debates do Fórum assumiram como essencial na construção de sociedades mais democráticas e coesas.
Um dos projetos coordenados pela Artemrede – Meio no Meio - foi o ponto de partida para uma conversa sobre processos artísticos participativos e a sua importância na capacitação e autonomização dos participantes, possibilitando a abertura de caminhos até então não descobertos ou reconhecidos como possíveis.
Todos os presentes neste debate foram unânimes em afirmar que o tempo é um elemento primordial: é preciso tempo para construir redes de socialização, para consolidar a formação, para criar resiliência através da capacidade de ultrapassar os obstáculos que vão surgindo. A continuidade dos projetos artísticos participativos é, assim, fundamental para a conquista de resultados duradouros, e essa continuidade depende das raízes que se criam nos territórios e da postura dos parceiros, nomeadamente dos municípios. O papel dos municípios foi referido reiteradamente, como parceiros fundamentais na transformação que se quer promover. Se alguns municípios já reconhecem a importância das práticas artísticas participativas (apesar de por vezes o investimento não acompanhar esse reconhecimento), outros ainda não estão neste ponto, o que ameaça a sustentabilidade do trabalho desenvolvido, alertaram.
Sobre este tema, mas numa outra conversa, François Matarasso defendeu que as formas de arte participativa ou comunitária têm como objetivo primordial garantir que todos têm acesso a meios de desenvolvimento social e pessoal, independentemente dos contextos socioeconómicos a que pertencem e que estas formas não podem ser apenas encaradas como instrumentos de inclusão social.
A hierarquia existente entre arte participativa e arte convencional deve também ser colocada em causa, transferindo para os participantes a responsabilidade na definição de métricas de avaliação de qualidade destes projetos, algo que o autor defendeu como essencial.
A pandemia introduziu constrangimentos nesta participação e provocou a necessidade de reinvenção de modelos e formatos, excluindo aqueles com menos condições e capacidades tecnológicas. Por outro lado, criou outras oportunidades, ao criar espaços de segurança para aqueles para quem a interação física é desconfortável.
Os efeitos da pandemia e o particular impacto que a pandemia teve nas mulheres, as mais afetadas pela crise e aquelas sobre as quais recai uma grande parte da responsabilidade na prestação de cuidados, foi um dos temas abordados num debate sobre o movimento municipalista feminista. Os governos locais estão em situação privilegiada para colocar o ‘cuidado’ no centro das decisões políticas e promover uma responsabilidade partilhada por todas e todos, foi afirmado pelas participantes.
Defendeu-se, assim, a aliança entre os movimentos municipalista e feminista, os quais coincidem na sua crítica à hegemonia e centralização das instituições e dos modelos de organização da vida política, social, económica e cultural. O municipalismo e o feminismo são ambos movimentos transformadores, porque pretendem provocar a mudança e desafiar os princípios com que se regem e organizam as sociedades, foi dito.
Partindo de uma afirmação da presidente da câmara de Barcelona, Ada Colau, sublinhou-se que a feminização da política não passa apenas por criar mais e melhores oportunidades para as mulheres, mas sobretudo pela transformação dos modelos de decisão e pela instituição de novas práticas de exercício do poder.
Sobre a relação entre cultura e igualdade de género, foi declarado o importante papel das políticas culturais enquanto motores de mudança. A cultura abre horizontes e recetividade a novos conceitos, ao mesmo tempo que provoca situações de tensão, como o conflito entre herança cultural e igualdade. A cultura tem um poder transformador, mas é preciso provocar a discussão e encaminhar este poder na direção certa, avisaram as oradoras. As políticas culturais baseadas na igualdade de género incluem colocar as mulheres em locais de decisão, mas também dar visibilidade à presença de mulheres nas narrativas públicas, como arte pública e a história oficial. Mas trata-se também do acesso das profissionais de cultura ao mercado de trabalho, da participação das mulheres no espaço público e do planeamento urbano para uma cidade segura e acessível a todas e a todos.
A construção da cidade a partir da cultura foi o mote de um debate que reuniu decisores e especialistas em cultura e território, que foram perentórios em afirmar a cidade como um bem comum e a cultura como instrumento de transformação das cidades. No entanto, salientou-se a importância de atender à dialética entre diversidade e desigualdade, porque o bem comum pode ser identificado de forma muito diversa.
Chamou-se ainda a atenção para a distinção entre agendas e dinâmicas sociais. As dinâmicas sociais devem ser duradouras e devem alimentar-se a si próprias, enquanto as agendas oscilam, alertaram. É fundamental, por isso, ter um trabalho sólido para além das agendas, capaz de criar um tecido forte e coeso, que sustente e reivindique políticas e práticas culturais fortes.
Na discussão sobre política de cidade, foi reconhecida a transversalidade da cultura, ou seja, a presença da cultura em todas as políticas e dimensões da sociedade, mas rejeitando a instrumentalização da mesma a favor de outros objetivos e agendas prioritárias (como o ambiente ou a transição digital), algo que é favorecido pelos instrumentos de apoio financeiro existentes.
Foi ainda debatida a questão da democratização / democracia cultural, reafirmando-se a importância da democratização do acesso, que deve ter em conta a diversidade e combater a desigualdade; mas também a promoção de novas competências, de formas de participação e criação, que permita criar novas centralidades culturais e construir um território mais coeso.
Os participantes alertaram ainda que as narrativas de ação em torno da cidade como um bem comum e do acesso democrático à cultura têm que ter pacotes financeiros associados, ou resumem-se a um conjunto de ideias interessantes, mas que não levam aos objetivos que se quer atingir. Neste ponto, afirmou-se o papel importante que as redes de municípios podem desempenhar, na medida em que os municípios organizados têm uma maior capacidade de negociação.
A invisibilidade da cultura nos documentos estratégicos mundiais foi um dos pontos discutidos neste e noutros debates. Desde 2004 que a organização Cidades e Governos Locais Unidos considera a cultura como 4º pilar do desenvolvimento sustentável, mas a comunidade internacional ainda não chegou ao mesmo nível de valorização: nos 17 Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 da ONU, nenhum diz respeito à cultura e, em 169 indicadores, aparece referida de forma incipiente. Há, assim, muito trabalho de advocacia a ser feito – a nível global e nacional. É importante, no entanto, desenvolver um trabalho de localização da cultura nos ODS e convocar os agentes culturais para a sua implementação. Entre os grandes desafios que as cidades enfrentam neste campo, está o de garantir que, ao nível local, os atores culturais estão sentados à mesa do desenvolvimento sustentável.
O Fórum Político terminou com um debate que abordou temas como a cultura nos instrumentos de financiamento, a territorialização das políticas e dos programas e a resiliência do tecido cultural. No que respeita ao Portugal 2030, desejou-se que continue a apoiar as ações imateriais e a criação de redes entre municípios com escalas e características diferentes, que se têm materializado em projetos que têm deixado lastro nos territórios. Foram dados alertas por parte dos autarcas presentes que, por vezes, a disponibilização de verbas dos fundos comunitários não chega às autarquias locais e às políticas de proximidade.
A reivindicação por políticas e programas mais territorializadas fez parte do discurso dominante, com os autarcas a lamentar a excessiva centralização dos recursos do PRR dedicados à intervenção no património. A própria gestão dos fundos beneficiaria da partilha entre os organismos centrais ou desconcentrados do Estado e as autarquias, que melhor conhecem o território, as suas necessidades e os seus agentes. Uma melhor cooperação entre os diversos níveis de poder, nacional e municipal, para responder às questões da cultura, com competências definidas, foi outro dos pontos defendidos.
A resiliência do tecido cultural foi uma das preocupações mais presentes, nomeadamente através de uma política integrada e de um financiamento estável que permita a sustentabilidade e o crescimento do setor cultural.
IMPULSO: Fórum Político da Artemrede pretende ser um contributo aberto para a discussão sobre a cultura e a sua importância na evolução das cidades. A participação de dezenas de agentes culturais, discutindo questões sobre sustentabilidade, coesão e desenvolvimento, deixa a Artemrede segura de que a cultura é fundamental na construção de sociedades democráticas e resilientes. Os executivos autárquicos que agora iniciam o seu trabalho têm uma responsabilidade clara na afirmação e concretização deste objetivo, que devem assumir como verdadeiro desafio estratégico da sua ação.